RESUMO DO PARECER 001/2022 DO IPHAE SOBRE A PATRIMONIALIZAÇÃO

Para facilitar a compreensão e estimular o conhecimento da cultura da erva-mate, o IBRAMATE produziu um resumo do parecer encaminhado à apreciação da Câmara Temática do Patrimônio Cultural Imaterial em seu ato inaugural de Instalação e funcionamento junto ao IPHAE, reforçando a sua importância na proteção e preservação das tradições e identidades dos grupos étnicos, comunidades e nações.

O registro do patrimônio cultural imaterial (PCI) requer um processo inclusivo e participativo que leve em consideração o valor e o significado atribuídos por diversos atores e agências patrimoniais. Além dos representantes e especialistas do Estado, é fundamental que o registro tenha significado para outros sujeitos e coletivos sociais envolvidos na preservação e dinamização dos bens culturais ao longo do tempo. O estabelecimento do patrimônio cultural exige um movimento processual situado e contextualizado, que reconheça e valorize os sujeitos e grupos sociais envolvidos, especialmente aqueles que mantêm vivas as memórias, costumes, tradições, cosmovisões e bens culturais das comunidades, povos, regiões, sociedades e nações.

A solicitação de registro do Sistema Cultural e Socioambiental da Erva-mate Tradicional como patrimônio cultural imaterial abrange os povos indígenas Guarani e Kaingang, comunidades quilombolas e grupos de agricultores familiares. Essa iniciativa valoriza as práticas culturais e de manejo relacionadas à erva-mate tradicional de base artesanal, diferenciando-a da erva-mate processada industrialmente.

Encontrada em vários estados do Mercosul, sua presença é forte no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A modernização agrícola e a industrialização afetaram a produção artesanal no RS, mas a iniciativa de registro busca valorizar e preservar essa prática tradicional, que desempenhou um papel econômico significativo nesta região.

Caracterização básica dos grupos societais mapeados e identificados pelo Inventário de Produção de Conhecimento da Erva-mate Tradicional:

Grupo 1: Povos Indígenas milenarmente territorializados no RS 

Os Guarani, muito antes da chegada dos grupos étnicos eurocentrados, já utilizavam as folhas de erva-mate, em língua indígena “ka’a”, “folha sagrada”, ou côgoi – que posteriormente foi incorporada e adaptada ao português como “congonha” – para preparar a bebida tradicional. Essa bebida denomina-se “ka’a y”, e traduz-se como “água de folha”. Em tempos idos os indígenas faziam o preparo colocando as folhas de erva-mate em uma cuia com água, e a bebida era tomada através de uma taquara, caniço ou osso – “tacuapi” – filtrado por um trançado de fibras vegetais. Os Guarani costumavam armazenar as folhas de erva-mate em cestas de taquara. 

Atualmente no espaço social e geográfico do Rio Grande do Sul temos registros de pesquisas etnográficas, museológicas e históricas, entre outras áreas disciplinares, que apontam à existência de manifestações culturais, práticas de manejo e atividades de produção e consumo da erva-mate nos seguintes sítios e localidades:

Guarani de Camaquã > Tekoa Água Grande

Guarani de Santa Maria > Tekoa Guaraviraty Pora

Guarani de Barra do Ouro, Caraá e Maquine > Tekoa Campo Molhado 

Grupo 2: Comunidades Quilombolas secularmente territorializados no RS 

A comunidade quilombola Corrêa, localizada no distrito de São Paulo das Tunas, município de Giruá, na região missioneira gaúcha, no Rio Grande do Sul. Composta por oito famílias de ancestralidade afrodescendente, ocupam uma área de seis hectares de terra onde cultivam uma boa variedade de alimentos e ervas medicinais, além de bois, cavalos, patos, galinhas e perus.

A principal atividade de subsistência da comunidade era a produção tradicional de erva-mate de carijo. No entanto, devido a condições climáticas e agrotóxicos, a estrutura do carijo foi destruída e restou apenas um pequeno pé de erva-mate. Os responsáveis pela produção enfrentam problemas de saúde e são os únicos detentores do conhecimento. José Corrêa, conhecido como “Tigre”, é reconhecido como um especialista nessa técnica artesanal de produção da erva-mate.

Representantes da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Giruá e da EMATER local estabeleceram contato com a comunidade, buscando criar uma rede de apoio para preservar no quilombo, a cultura da erva-mate.

Grupo 3: Agricultores Familiares 

Considerando as informações bibliográficas geradas na fase de Mapeamento do Inventário Cultural e em dados disponibilizados em reuniões e troca de e-mail com o biólogo e mestre em Desenvolvimento Rural pela UFRGS Moises Luz, incorporo a seguir, com sua anuência, uma caracterização o conjunto de famílias da agricultura familiar detentoras do saber-fazer em torno da fabricação artesanal de erva-mate tradicional: 

1. Comunidade de agricultores familiares em Bozano
Um grupo de famílias, auto-organizadas a partir dos laços de vizinhança, jazem periodicamente mobilizadas a fim de processar a erva-mate tradicional para seu próprio consumo. Realizam o sapeco manualmente. Amarram os feixes de erva e a levam para secar no carijo, que está montado dentro de um fragmento florestal. A lenha usada para secar a erva é selecionada de espécies apropriadas. O cancheamento é realizado com trilhadeira. O soque é movido com roda d’água.

2. Grupo Familiar de Santo Cristo
A família tem realizado o procedimento da Poda em áreas nas vizinhanças. Sapeco manual. Erva-mate secada no carijo com algumas estruturas adaptadas. Soque movido com motor a combustão.

3. Grupo familiar em Panambi
Poda de erval próprio em sistema agroflorestal e agroecológico e de árvores das vizinhanças. Sapeco manual. Secagem no carijo. Cancheamento manual com facão de madeira. Soque com motor elétrico. Seleção de lenha de espécies preferenciais e apropriadas.

4. Grupo familiar em Erval Grande
Manejo de erval em sistema agroflorestal e agroecológico e também poda das árvores da vizinhança. Sapeco manual. Secagem no carijo. Cancheamento manual com facão de madeira e soque com motor elétrico.

5. Grupo familiar em Humaitá
Poda de erva-mate nas vizinhanças. Sapeco manual. Secagem em barbaquá adaptado chamado “forno”. Cancheamento com facão de madeira. Soque movido com turbina d’água. 

6. Grupo familiar de Seberi

Manejo de erval em sistema agroflorestal. Também obtém das vizinhanças. Sapeco com cilindro giratório. Secagem no barbaquá. Cancheamento com máquina semelhante a trilhadeira. Soque com motor elétrico. Comércio nacional e internacional.

7. Grupo familiar em Ipê, RS
Manejo de erval em sistema agroflorestal e nativa. Também obtém da região. Sapeco com cilindro giratório. Secagem sem fumaça em estrutura adaptada. Soque com motor elétrico. Comércio em feira ecológica.

8. Grupo familiar em Santo Antônio do Palma
Manejo de erval próprio agroecológico, para consumo próprio. Sapeco com cilindro giratório. Secagem no barbaquá. 

Além da listagem acima, existem experiências em andamento no Estado, as quais também deverão ser descritas e contempladas pela etapa de Inventario Cultural de Produção de Conhecimento, com Grupos familiares dos municípios de Ibarama, Mato Castelhano e Marau, além de um Grupo familiar localizado na rota turística Caminhos de Pedra em Bento Gonçalves. 

IV – Ações de salvaguarda de curto prazo visando consecução do Registro 

Para alcançar o registro do Sistema Cultural e Socioambiental da Erva-mate Tradicional, serão realizados três seminários presenciais com detentores e produtores do bem cultural. Será necessário obter a anuência prévia, livre e informada dos detentores indígenas, quilombolas e agricultores familiares, seguindo as diretrizes da Convenção 169 da OIT, que prevê a consulta aos interessados antes da implementação de medidas legislativas ou administrativas que os afetem.

O processo de registro será continuado e concluído através da construção do Inventário Cultural de Produção de Conhecimento do Sistema Cultural e Socioambiental da Erva-mate Tradicional. Será formulado e implementado um edital público pela Secretaria de Estado da Cultura e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado, como um instrumento de política cultural para efetivar o Programa Estadual do Patrimônio Imaterial (PEPI) e garantir a continuidade das ações de salvaguarda.

O processo de patrimonialização em andamento será divulgado para as instituições públicas federais, estaduais e municipais, bem como para a sociedade civil envolvida no campo cultural e patrimonial estadual.

V – Salvaguardas de médio e longo prazo 

Para garantir a preservação do Sistema Cultural e Socioambiental da Erva-mate Tradicional a longo prazo, é necessário implementar uma política pública sustentável que promova uma distribuição equitativa e justa das compensações financeiras geradas pela erva-mate no Rio Grande do Sul. Isso inclui o reconhecimento e valorização dos aspectos culturais, históricos e socioambientais dos detentores e produtores da erva-mate, além de programas de pesquisa, extensão e conscientização patrimonial.

É importante estimular o turismo comunitário nas comunidades que produzem a erva-mate de forma tradicional, visando gerar renda, manter as estruturas essenciais para a continuidade do bem cultural e promover a preservação dos saberes tradicionais. Também é necessário que os municípios desenvolvam programas educativos para difundir o bem cultural e estabelecer uma conexão entre as novas gerações e a erva-mate, mesmo que não façam parte dos grupos detentores dos saberes tradicionais.

Parcerias com instituições agrícolas, como a EMATER, devem ser incentivadas para melhorar as condições de produção dos detentores indígenas, quilombolas e pequenos agricultores da erva-mate tradicional. Medidas de proteção dos bosques remanescentes de árvores de erva-mate tradicional e das comunidades quilombolas, indígenas e agricultores familiares devem ser adotadas para evitar práticas agrícolas nocivas e desequilibradas, como o uso excessivo de agrotóxicos.

VI – Considerações finais 

O objetivo deste documento é cumprir o processo de avaliação técnica para instruir o registro do bem cultural no IPHAE, de acordo com as normas da Secretaria de Estado da Cultura. Recomenda-se continuar o Inventário Cultural de Identificação e Produção de Conhecimento do Bem Cultural Erva-Mate como parte fundamental do processo de registro do Sistema Cultural e Socioambiental da Erva-mate Tradicional como Patrimônio Cultural Imaterial.

A realização desse inventário permitirá valorizar e reconhecer a diversidade étnico-racial, linguística e cultural do Rio Grande do Sul, revelando o conjunto societal envolvido na produção, circulação e consumo da erva-mate tradicional. Desde os povos indígenas Guarani e Kaingang, que têm uma relação cosmológica com a erva-mate, até os quilombolas e pequenos agricultores familiares que cultivam e beneficiam a erva-mate de forma tradicional, o inventário abrangerá uma variedade de pessoas e coletivos. 

Walmir Pereira – ID 1688634 

Analista Sociólogo – IPHAE/SEDAC